sexta-feira, 4 de janeiro de 2013



Quanto Custa ser Feliz?

 por Elisa Kozasa
 publicado originalmente em Vyaestelar







"...felicidade depende muito do cultivo de uma riqueza e estabilidade interiores, a partir do momento em que as necessidades materiais básicas estejam sanadas" Lembrei-me de uma conversa com um amigo, desses que as pessoas julgam afortunados: ainda bastante jovem, ganhou uma herança substancial que o permitiria não trabalhar mais, se esse fosse seu desejo.
Mas, em uma conversa, pouco após separar-se de sua ex-esposa, ele soltou uma frase que gerou polêmica durante um jantar em que ele era o único “não proletário”:
“Gente, posso dizer para vocês por experiência própria que dinheiro não traz felicidade!”.

Aposto que, assim como a maioria dos convidados daquele jantar, o leitor deve estar se perguntado: "Como?"

Bem, a partir deste ponto gostaria de fazer algumas considerações, como a que Eduardo Giannetti coloca na contracapa de um de seus livros:

“Discutir a felicidade significa refletir sobre o que é importante na vida. Significa ponderar os méritos relativos de diferentes caminhos e pôr em relevo a extensão do hiato que nos separa, individual e coletivamente, da melhor vida ao nosso alcance”
O que acredito trazer felicidade para mim, talvez não traga para o outro, em especial se ele já desfrutou do que estou buscando, e esteja neste momento tentando sanar alguma outra carência.

Por outro lado, quantos de nós fizemos alguma pausa proposital, consciente, apenas para refletir sobre o que nos traz felicidade?

Será a felicidade algo inatingível como acreditam os mais pessimistas, ou será objeto de consumo rápido e fácil como vendem alguns livros de auto-ajuda? 


Dalai Lama
Esta necessidade de uma reflexão, para traçar estratégias para a conquista da felicidade possível, é ressaltada pelo próprio Dalai Lama:

“A adoção da felicidade como um objetivo legítimo e a decisão consciente de procurar a felicidade de modo sistemático podem exercer uma profunda mudança no restante de nossas vidas”

Envolvidos na luta pela sobrevivência muitos sequer questionam o que estão fazendo nas suas vidas e com suas vidas. “Tenho que trabalhar e pronto. Não interessa se gosto ou não do que faço. As crianças estão lá em casa e precisam que eu trabalhe”. “Este negócio de felicidade é prá gente rica e de vida boa”. É possível que muitos pensem assim, mas hoje em dia já existem pesquisas a respeito de fatores que podem influenciar a felicidade que parecem revelar informações surpreendentes.

Por exemplo, em uma revisão de literatura, *Ferraz e colaboradores concluíram que a felicidade “É um fenômeno predominantemente subjetivo, estando subordinada mais a traços psicológicos e socioculturais do que a fatores externamente determinados”, contrariando a visão de muitos que acreditam que estar bem depende essencialmente da busca e conquista de objetivos externos.

Isto me faz lembrar uma entrevista da atriz Regina Casé com um garoto de família humilde do Nordeste, que adorava ir para a praia surfar com sua pranchinha amarela junto com os amigos. Quando questionado a respeito de riqueza e felicidade, ele disse em sua simplicidade que ele era feliz e que estava satisfeito com o que tinha (a tal pranchinha amarela), com um sorriso verdadeiro típico de uma criança. Por outro lado, creio que muitos já nos deparamos com uma cena em uma loja de brinquedos, em que uma criança mimada faz escândalo pelo fato do pai se recusar a comprar o videogame de última geração. 


Felicidade passageira
Tive o privilégio, há alguns anos atrás de assistir a uma palestra do prêmio Nobel de economia Daniel Kahneman e de participar de um grupo de discussões com ele em seguida. Uma de suas pesquisas a respeito de fatores relacionados à felicidade mostrava o quanto eventos aparentemente transformadores como um casamento ou ganhar na loteria tinham um efeito menos permanente do que a maioria de nós imagina. Em um gráfico ele mostrava que o nível de “felicidade” no momento do casamento ou logo após ganhar na loteria, tinha um aumento incrível, mas que logo após alguns meses, voltava a um patamar muito semelhante ao anterior a esses eventos. Em um primeiro momento isso pode ser inacreditável, mas é só nos lembrarmos de alguns exemplos conhecidos como o da princesa Diana, e seu casamento literalmente de contos de fadas, e os fatos que se sucederam após esse evento, incluindo traição, perda da liberdade, perseguição pela imprensa e transtornos mentais como a depressão.

Parece que, de alguma maneira, depender muito de eventos externos para atingir um estado de felicidade mais ou menos permanente, não é uma boa alternativa. Recentemente, lendo um livro de Mathieu Ricard, um francês PhD em biologia molecular, que hoje vive no Nepal, ex-aluno de um prêmio Nobel no Instituto Pasteur e que desde a década de 70 tornou-se um monge da tradição budista, pude capturar mais alguns indícios de que a tal felicidade depende muito do cultivo de uma riqueza e estabilidade interiores, a partir do momento em que as necessidades materiais básicas estejam sanadas.

Ele conta que apesar de ser filho de um famoso filósofo agnóstico e de uma artista plástica e tendo tido o privilégio de conviver com grandes intelectuais, ele descobriu que muitas dessas pessoas não podiam ser consideradas exemplos de vida. Durante suas viagens para o Oriente, porém, ele descobriu em mestres praticantes de meditação, que viviam em pequenas cabanas, uma humildade e sorriso verdadeiros, aliados a uma inabalável fortaleza interior frente às adversidades. E, como ele mesmo descreve, dentro de um espírito científico, ele sentiu uma irresistível necessidade de descobrir este caminho de vida.
A partir da leitura deste texto e principalmente dos livros e artigo sugeridos abaixo, sugiro uma profunda reflexão: do que depende e quanto custa minha felicidade?


Dicas de leitura:

1. Giannetti E. Felicidade. Companhia das Letras, São Paulo, 2002. - clique aqui para comprar

2. Dalai Lama e Cutler HC. A arte da felicidade: um manual para a vida. Martins Fontes, São Paulo, 2000. - clique aqui para comprar

3. Ricard M. Felicidade: a prática do bem estar. Ed. Palas Athena, São Paulo, 2007.

4. *Ferraz RB, Tavares H, Ziberman. Felicidade: uma revisão. Revista de Psiquiatria Clínica 34(5):234-242, 2007.



Leia o original em http://www2.uol.com.br/vyaestelar/viverbem_feliz.htm
Belíssima mensagem.

Vale a pena assistir.


quarta-feira, 2 de janeiro de 2013








imagem: budanaweb


Morte

Nós todos vamos morrer. E, acredite ou não, esse é um evento tão natural quanto nascer, crescer ou ter filhos. No entanto, a idéia da finitude nos enche de terror. Por quê? Será que precisa ser assim? Dá para sofrer menos?

por Maria Fernanda Vomero

Extraído originalmente do portal da Superinteressante em fevereiro de 2002

Há muito tempo, no Tibete, uma mulher viu seu filho, ainda bebê, adoecer e morrer em seus braços, sem que ela nada pudesse fazer. Desesperada, saiu pelas ruas implorando que alguém a ajudasse a encontrar um remédio que pudesse curar a morte do filho. Como ninguém podia ajudá-la, a mulher procurou um mestre budista, colocou o corpo da criança a seus pés e falou sobre a profunda tristeza que a estava abatendo. O mestre, então, respondeu que havia, sim, uma solução para a sua dor. Ela deveria voltar à cidade e trazer para ele uma semente de mostarda nascida em uma casa onde nunca tivesse ocorrido uma perda. A mulher partiu, exultante, em busca da semente. Foi de casa em casa. Sempre ouvindo as mesmas respostas. “Muita gente já morreu nessa casa”; “Desculpe, já houve morte em nossa família”; “Aqui nós já perdemos um bebê também.” Depois de vencer a cidade inteira sem conseguir a semente de mostarda pedida pelo mestre, a mulher compreendeu a lição.
Voltou a ele e disse: “O sofrimento me cegou a ponto de eu imaginar que era a única pessoa que sofria nas mãos da morte”.
A morte pode ser vista como um mistério incompreensível. Ou como um absurdo inaceitável. A morte pode até ser tratada como um tabu, assunto do qual a maioria das pessoas não gosta de falar. Mas, seja como for, aceitemos isso ou não, a morte é um fato, uma realidade inexorável. E que vem para todos nós. Por mais que queiramos nos esconder dela, deixar de existir é uma coisa tão natural quanto existir. Na verdade, a morte é provavelmente a única coisa certa na sua existência ou na minha – e também na de nossos pais, nossos filhos, nossos ídolos e inimigos, de todas as pessoas que amamos e mesmo daquelas que jamais chegaremos a conhecer: é certo que todos nós vamos morrer um dia. Pessoas boas, pessoas ruins, gente em Xanxerê, Santa Catarina, ou em Nagano, no Japão. E esse dia pode acontecer amanhã ou daqui a 60 anos.
A morte faz parte da vida. Todos começamos a morrer exatamente no dia em que nascemos. A morte, portanto, é um etapa da nossa existência com a qual temos que conviver. Pode-se conviver melhor ou pior com ela. Mas não se pode evitá-la. Pode-se aceitar a sua inevitabilidade e olhá-la de frente. Ou pode-se negá-la, fugir dela, imaginar que não pensar na morte possa fazer com que ela deixe de acontecer com você ou com a sua família. Mas o fato é que todos nós estamos programados para nascer, crescer e morrer – uma obviedade esquecida por boa parte da sociedade ocidental contemporânea, que teima em ver a morte como um evento artificial, inesperado e injusto. Sobretudo, costumamos vê-la como um evento exclusivo, pessoal, que isola quem sofre uma perda, por meio da dor, do resto do mundo. Quando, ao contrário, não há nada menos exclusivo do que morrer. Nem nada que perpasse mais a humanidade do que o sofrimento de uma perda.
Como está expresso na fábula tibetana, a morte não é privilégio nem desgraça particular de ninguém. Ela chega para todos, sem exceção.
Mas, afinal, se a morte é tão comum e corriqueira, por que ela nos causa tanto medo? “O maior desejo do homem é a imortalidade”, diz a psicóloga Ingrid Esslinger, da Universidade de São Paulo (USP), acostumada a atender pessoas em situação de luto. “Por isso, muitas vezes a morte é considerada uma inimiga.” E uma adversária, que poderia ser vencida pelos avanços científico-tecnológicos do século XX, que aumentaram indiscutivelmente a eficiência dos diagnósticos, dos medicamentos, das técnicas cirúrgicas etc. O sonho da permanência ganhou um reforço com as melhorias trazidas pela medicina, com o aumento da expectativa de vida, com a possibilidade de haver cura para todas as doenças, mesmo o câncer ou a Aids. Enfim, soa como um despropósito falar de morte a quem tem as descobertas da ciência a seu favor. Afinal, se existem meios de prolongar a vida útil do ser humano, de manter-se jovem, de atrasar o envelhecimento, de viver mais de 100 anos, por que pensar na finitude?
É um paradoxo: a valorização da vida e a ilusão de eterna beleza e jovialidade trazidas pela vida moderna acabam gerando, por meio do apego a tudo isso, muito mais tristeza e sofrimento pelo fim inevitável da existência do que felicidade pelo mais de vida que proporcionam.
O mundo ocidental transformou a morte em tabu: ela costuma ser ocultada das crianças e banida das conversas cotidianas. Tudo aquilo que possa lembrá-la – a enfermidade, a velhice, a decrepitude – é escamoteado. Os doentes morrem no hospital, longe dos olhos – e, não raro, do coração – de seus amigos e parentes. E os rituais de luto são cada vez mais rápidos e pragmáticos. O medo natural que todo ser humano sente diante da própria finitude vira pânico. E mesmo a morte natural – não causada, por exemplo, pela tremenda violência que a cada dia assola os cidadãos no Brasil – acaba virando sinônimo de aniquilamento sumário, de abreviamento. O que, no mais das vezes, não corresponde à realidade por se tratar apenas de uma vida que chegou naturalmente ao fim, de uma existência que simplesmente expirou.
“Partimos de idéias preconcebidas sobre a morte, formadas a partir da nossa personalidade, da educação familiar e do ambiente sociocultural e religioso em que vivemos”, diz a psicóloga Bel Cesar, do Centro de Dharma da Paz, em São Paulo, e autora de Morrer Não Se Improvisa. Tais imagens são rótulos que muitas vezes não correspondem à experiência humana e que acabam alimentando fantasias amedrontadoras. “Refletir sobre a morte pode torná-la mais familiar e, portanto, menos ameaçadora”, diz.
O primeiro passo para conviver melhor com a idéia da morte é esquecer aquela imagem medieval, um tanto tétrica, de um esqueleto coberto com uma capa preta carregando uma foice afiada na mão. Talvez uma imagem melhor para a morte seja imaginá-la como o fim de uma festa muito bacana: você já sabia que ela acabaria, que ela teria que acabar, em algum momento. E, pensando bem, talvez não seja de todo mal que a festa termine. Você agüentaria dançar na pista para sempre? Por melhor que seja a música, tem uma hora que seu corpo e sua mente pedem descanso. E aí, talvez, seja o momento mesmo de sair da pista, serenamente, sem traumas, e dar lugar a quem está chegando à festa cheio de gás.
Bel propõe um exercício de meditação, inspirado nas práticas budistas: repita a palavra “morte”, de olhos fechados, inúmeras vezes. “Surgirão pensamentos, imagens e sentimentos muitas vezes antagônicos. Mas, se você continuar essa experiência de mergulhar até onde a palavra ‘morte’ o levar, verá que algo dentro de você mudará positivamente”, diz ela.
O medo da morte é um sentimento inerente ao processo de desenvolvimento humano. Aparece na infância, a partir das primeiras experiências de perda. E tem várias facetas: trata-se de um medo do desconhecido, somado ao medo da própria extinção, da ruptura da teia afetiva, da solidão e do sofrimento. “O medo da morte é fundador da cultura”, diz a socioantropóloga Luce Des Aulniers, responsável pela disciplina de Estudos Sobre a Morte, da Universidade de Quebec, em Montreal, Canadá. “Esse medo funciona como pivô e como motor de todas as civilizações. A partir do desejo de perenidade, se desenvolvem as instituições, as crenças, as ciências, as artes, as técnicas e mesmo as organizações políticas e econômicas.”
Esse é o lado, digamos, vital da morte. “O medo da morte nos força a viver – a nos relacionarmos, a procriarmos, a criarmos, a construirmos coisas que nos transcendam”, diz Luce. Na ilusão da imortalidade, o ser humano acredita que suas obras sejam permanentes e garantam que ele não seja esquecido. Cada um adapta, à sua própria maneira, a máxima “plantar uma árvore, escrever um livro e fazer um filho”. Isso ocorre porque, para o nosso inconsciente, a morte nunca é possível nem admissível quando se trata de nós mesmos. “A idéia da não-existência provoca tal desconforto que a mente humana acaba criando alguns mecanismos de defesa para fugir dessa realidade”, diz o psiquiatra e psicanalista Roosevelt Smeke Cassorla, da Sociedade Brasileira de Psicanálise, em São Paulo. A negação e a repressão da idéia de morte são exemplos desses artifícios.
Nada disso é novidade. Desde os tempos mais remotos, os homens já enxergavam a morte como elemento antagônico à vida – e não como parte integrante e inseparável dela. Talvez fosse mais fácil aceitá-la como fato natural quando ela acontecia aos borbotões, quando a expectativa de vida das pessoas era de 35 anos. Mas o estranhamento e o terror sempre existiram. As pinturas encontradas nas paredes de cavernas como Lascaux e Chauvert, na França, revelam o incômodo que a morte provocava no homem de 30 000 anos atrás. Os episódios alegres, como as caçadas, eram retratados em cores vivas, usando óxido de ferro (alaranjado) ou calcário amarelo. As imagens fúnebres, por sua vez, eram pintadas com cores escuras, com carvão.
O antagonismo se mantém dentro de cada um de nós, no jogo constante entre Eros, o deus grego do amor, e Tanatos, o deus da morte, para usar uma imagem cunhada por Sigmund Freud, fundador da psicanálise. As forças da vida, representadas por Eros, estimulariam o crescimento, a integração, a autoproteção e a sobrevivência. As forças da morte, representadas por Tanatos, alimentariam os instintos destrutivos e as atitudes de auto-sabotagem, por exemplo. Da conciliação dessas forças contraditórias, surgiria o equilíbrio e o vigor emocional necessários para viver.
No entanto, o medo de morrer pode gerar um apego desmedido a elementos cotidianos e um conseqüente desespero diante da possibilidade de vir a “perder tudo” com a morte – a companhia dos amigos, o carro novo, os imóveis, o status social, os projetos não realizados. No budismo, assim como na tradição cristã, o desapego é condição essencial para uma “boa morte”. “Normalmente assumimos que precisamos dominar alguma coisa para que ela nos traga felicidade. E nos perguntamos: como é possível saborear alguma coisa se não podemos possuí-la?”, escreve Sogyal Rinpoche, em seu O Livro Tibetano do Viver e do Morrer. “Mas, na morte, não podemos levar nada conosco.” Nem bens, nem diplomas, nem o sucesso. Eis aqui outro paradoxo: para viver bem, sem o terror e o tormento da idéia do fim, é preciso cultivar um certo desapego em relação à vida.
Em outras palavras: para experimentar a “boa morte” e morrer serenamente – em oposição a viver atarantado pela iminência da “cadavérica” e assim morrer sofrendo – é preciso absorver a idéia de que, como quase tudo neste mundo, também nós somos impermanentes.
A vida é como um contrato que estabelece a própria vigência em uma das cláusulas. Ou seja, basta estar vivo para estar sujeito às leis da existência, que determinam o seu próprio término. Lutar contra esse fato inelutável é garantia de dor. Ao contrário, aceitar a transitoriedade da condição humana – que se aplica a você, a mim e a mais seis bilhões de indivíduos – ajuda a aliviar o sofrimento que a idéia da morte costuma trazer. Você não pode mudar o fato de que vai acabar um dia. Mas você pode mudar o modo como se relaciona com esse fato. Em certas ordens religiosas católicas, os monges, ao se encontrarem nos corredores do mosteiro, costumam dizer uns aos outros: “Memento mori”, uma expressão latina que significa “lembre-se de que vai morrer”. A saudação – que é o contraponto de “Carpe diem” (“aproveite o dia”) – funciona como um exercício espiritual de aceitação gradual e diária da morte, vendo-a como uma conseqüência da própria vida e também de preparação para o momento em que ela acontecer.
O contrário disso é o culto ao ego, ao “pequeno eu” que há dentro de cada um de nós, manifestado na não-aceitação do curso natural dos acontecimentos, quando ele não ocorre como gostaríamos. E que está presente no indivíduo que tenta se colocar sempre acima do todo a que pertence. Ao não conseguir fazê-lo, esse “eu” sofre exagerada e desnecessariamente para aceitar a parte que lhe cabe. Na vida, quanto mais você está centrado em si mesmo, sem compartilhar suas alegrias e suas frustrações com os outros, mais você sofre com a ausência de solidariedade, com o isolamento que impõe a si mesmo, com a falsa idéia de que está desamparado. Na morte, acontece a mesma coisa. Quanto menos você compartilha a sua dor – e o sofrimento é um dos elos fundamentais da humanidade –, mais insuportável ela se torna.
As perdas que você acumula ao longo da vida podem tanto potencializar o seu medo da morte quanto ensiná-lo a conviver melhor com a finitude. “Vivemos pequenas perdas todos os dias. Uma separação, uma demissão, a morte de um amigo, a notícia de uma doença incurável”, diz a psicóloga Maria Helena Bromberg, coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre Luto (Lelu), da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. “Essas experiências cotidianas de morte nos ajudam a entender que nada dura para sempre. Inclusive nós, em nossa natureza mortal.”
Uma história antiga ajuda a entender melhor esse processo de pequenas aprendizagens – e como muitos de nós o ignoram. Um dia, há muito tempo, um homem resolveu fazer um trato com a Morte. Prometeu a ela que não ofereceria resistência quando sua hora chegasse. Mas pediu, em troca, que fosse avisado com antecedência porque queria ter tempo suficiente para terminar todas as suas tarefas. O acordo foi feito. Tempos depois, houve um acidente grave na cidade e muitos amigos do homem morreram. Anos mais tarde, um vizinho próximo faleceu. Em seguida, foi a vez de um tio. Até que o homem ficou doente e, em alguns meses, encontrou-se com a Morte. Ela tinha vindo buscá-lo. Revoltado, reclamou: “Eu pedi que você me avisasse quando viria e não recebi um sinal!” Ao que a Morte respondeu: “A morte dos seus amigos, do seu vizinho, do seu tio não bastaram?”
Para quem busca na filosofia maneiras de lidar melhor com a morte, as reflexões finais do filósofo grego Sócrates – condenado a tomar cicuta, um veneno letal –, realizadas no século V a.C., representam um excelente exercício de aceitação. “Porque morrer é uma ou outra destas duas coisas. Ou o morto não tem absolutamente nenhuma existência, nenhuma consciência do que quer que seja. Ou, como se diz, a morte é precisamente uma mudança de existência e, para a alma, uma migração deste lugar para outro”, afirmou Sócrates. Em outras palavras: para quem não acredita na continuação da vida, a morte é o nada, é a ausência completa de angústias e desesperos, é o fim das aflições. E para quem acredita na continuação da vida, a morte é a passagem desta existência para outra melhor. De qualquer modo, a dor estaria na vida e não na morte.
Quando chegou o momento de beber o veneno, Sócrates disse a seus discípulos, numa última lição: “Mas já é hora de irmos: eu para a morte e vocês para viverem. Mas quem vai para melhor sorte é segredo, exceto para Deus.”
A morte é um assunto tão complexo que sequer há uma concordância entre os cientistas quanto sua definição. No campo filosófico, essa discussão fica ainda mais sinuosa. “Apesar de considerarmos a morte como um evento biologicamente irreversível, ela não pode ser determinada exclusivamente pelo critério biológico, pois envolve também questões ontológicas e filosóficas”, afirma o patologista forense Marcos de Almeida, professor de Medicina Legal e Bioética da Universidade Federal de São Paulo. Alma e consciência são sinônimos? Existe uma alma imortal? Se sim, para onde ela vai quando morremos? Sem respostas definitivas da ciência, o homem busca, nas crenças religiosas, explicações para o fenômeno da morte. Para uns, trata-se de uma passagem, uma transição desta vida para outra, mais plena e mais feliz. Para outros, é o momento máximo de iluminação, uma forma de libertação do sofrimento.
Há ainda aqueles para quem morrer é simplesmente deixar de existir – como se fôssemos uma lâmpada que se apaga, sem qualquer possibilidade de transcendência.
“Pesquisas demonstram que pessoas com forte grau de envolvimento religioso, independente da crença, geralmente têm menos medo da morte”, afirma a psicóloga Maria Júlia Kovácz, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte (LEM) da USP e autora de Morte e Desenvolvimento Humano. “A fé ajuda a superar a ansiedade em relação à idéia de finitude”, diz ela. Para o psicanalista Roosevelt Cassorla, “na religião o indivíduo convive melhor com a finitude porque lá encontra certezas sobre por que vive, por que morre e o que acontece após a morte.”
Se há uma outra vida que se segue à morte, existiria então uma continuidade da mente ou do espírito. “Viver em função dessa continuidade nos torna mais responsáveis pelas conseqüências dos nossos atos”, diz a psicóloga Bel Cesar. “O fruto apodrece, cai no chão, mas deixa a semente que dará vida a outro fruto. Assim também conosco.” A visão espiritual da morte implica desapego. Afinal, é também por meio da aceitação da impermanência humana que a religião ajuda a suavizar o sofrimento causado pela finitude. Por outro lado, a idéia de transcendência, do indivíduo que vence a morte, paradoxalmente embute uma aspiração à perenidade, ao não admitir que o sujeito chegue a um fim e ao propor que ele perdure em algum outro lugar, existindo de alguma outra maneira.
Em oposição à visão espiritualista da morte, há a tradição materialista ocidental, que surgiu na Antigüidade e depois foi retomada pelos filósofos do Iluminismo, a partir do século XVIII, para a qual a morte é o fim total e absoluto. Nada mais do que a interrupção de um processo neurofisiológico, de um mero evento biológico. Essa concepção, mais tarde lapidada pelos existencialistas, como o francês Jean-Paul Sartre, funda muito da nossa visão de que morrer é um fracasso, um escândalo, uma idéia inconcebível com a qual é impossível lidar e inútil tentar conviver. “Morrer é um absurdo”, escreveu o filósofo existencialista Arthur Schopenhauer (1788-1860). A morte não cabe na idéia cartesiana de vida – para a qual tudo poderia ser medido, compreendido, planejado. A finitude quebra a ilusão iluminista e antropocêntrica de que o homem poderia controlar tudo por meio da sua razão. A possibilidade de não estar mais aqui amanhã não cabe nesse jeito de entender o mundo.
O Ocidente, em seu esforço por não admitir a morte, está há pelo menos 30 anos obcecado pela idéia do jovem como metáfora de vida saudável. O envelhecimento, que também pode ser saudável, é visto sempre como decrepitude – e a morte é vista sempre como a epítome disso. “Há uma negação muito clara da finitude. Sobretudo porque os valores da sociedade de massa e de consumo são antagônicos à idéia de morte: o fetichismo da juventude eterna, os ideais de progresso, a acumulação de bens, a busca da imortalidade”, diz Olgária Feres Matos, professora do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. A sociedade ocidental vive um presente perpétuo, imediato. “Não há nem a visão de um futuro nem a evocação de um passado. Por isso, a morte não é admitida como uma experiência humana aceitável”, afirma Olgária. O resultado é uma sociedade atormentada, que busca inutilmente a serenidade e a felicidade não no autoconhecimento, mas em fugas da realidade indiscutível de que um dia iremos deixar de existir.
“Atualmente se vive muito mal. As pessoas, hipnotizadas por falsas necessidades, não têm uma vida emocional rica. E morre-se de modo ainda pior”, diz o psicanalista Roosevelt Cassorla. Muitas vezes, morre-se sozinho, na assepsia gelada dos hospitais, experimentando um dos medos mais primitivos do ser humano: a solidão. Até o luto é suprimido – uma exigência implícita para que a dor seja contida, pois os sinais de morte não podem transparecer aos que ficaram.
“Gastamos nossos dias tentando aproveitar a vida e chegamos ao momento da morte totalmente despreparados”, afirma o filósofo Basílio Pawlowicz, da Associação Palas Athena, um centro de estudos especializado em temas ligados à espiritualidade, em São Paulo. “Se você não disse o que queria dizer, não amou o quanto poderia amar, não tentou aquilo que desejava tentar, logicamente morrerá angustiado, com a sensação de que a vida se foi e tudo ficou pela metade.”
Mesmo no mundo ocidental, no entanto, sobrevivem tradições que, ao festejar a morte, celebram a vida. O “Dia dos Mortos”, no México, é um exemplo disso. “Ainda existem aldeias que desenterram os mortos nesse dia. Trata-se de um costume indígena milenar. As refeições são feitas no cemitério e as crianças ganham doces e bombons em forma de caveiras”, diz o historiador Leandro Karnal, professor de História da América na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “No interior do país, sobrevive a prática de conversar com os mortos para colocá-los a par do que aconteceu durante o ano.” As famílias preparam altares para seus falecidos e neles colocam os objetos de predileção do parente morto: livros, cigarros, comidas, fotografias.
A atitude de festejar a morte também está presente na cultura japonesa. “Povoado do Moinho”, o último episódio do filme Sonhos (1992), do diretor japonês Akira Kurosawa, exibe o confronto entre a antiga concepção de morte, expressa nos ritos funerários do vilarejo, e a nova, ocidentalizada, representada por um forasteiro que assiste à cerimônia. O cortejo segue, alegre, pelas ruas do povoado. Crianças, jovens e adultos cantam e dançam durante todo o trajeto do enterro. Eles celebram a morte de uma das mulheres mais velhas da aldeia. O clima de festa surpreende o forasteiro, acostumado – como nós – à atmosfera sombria de boa parte da liturgia funerária ocidental. Um velhinho centenário, então, explica ao rapaz que é uma honra encontrar a morte depois de uma existência tão plena como a daquela mulher. Por isso, tal fato merece comemoração. A história mostra como o fato de morrer pode ser encarado com serenidade e satisfação, como uma homenagem à própria vida que terminou ali.
A morte já foi vista de modo mais familiar pelo Ocidente. E não faz tanto tempo assim. Até meados do século passado, era costume morrer em casa, cercado por parentes. “A família reunia-se em volta do leito para ouvir a última palavra daquele que estava morrendo”, afirma o historiador Eduardo Basto de Albuquerque, da Universidade Estadual Paulista, em Rio Claro. “Era um momento de despedida.” Não se ocultava das crianças a morte como se faz atualmente. O velório também era, na maioria das vezes, realizado em casa – tradição que ainda sobrevive em algumas cidades do interior do Brasil. “Existiam comidas típicas para a ocasião. Os parentes preparavam alguns pratos para receber os conhecidos que participavam do enterro. Havia, inclusive, cânticos e orações especiais para o momento”, diz Eduardo.
Com a morte tendo sido transferida para a impessoalidade dos hospitais, perdemos a noção da importância dos rituais funerários, que conferem um sentido ao sofrimento e à morte. A expulsão da morte da nossa intimidade, privando aquele que está prestes a morrer da nossa ternura e da nossa solidariedade nos momentos finais, é uma metáfora da negação da finitude que operamos em nossas próprias vidas. “Os rituais de morte estão presentes em todas as sociedades do planeta. Servem para a compreensão ‘social’ do fenômeno: ajudam a digerir o impacto provocado pela perda do outro e funcionam como fator de agregação daquela sociedade”, diz o antropólogo Guillermo Ruben, da Unicamp.
“Os rituais seculares foram esvaziados de sentimentos e significado”, escreveu o sociólogo alemão Nobert Elias, na arguta análise da experiência de morte nos dias de hoje, presente em A Solidão dos Moribundos. “O crescente tabu da civilização em relação à expressão de sentimentos espontâneos e fortes trava suas línguas e mãos. E os viventes podem, de maneira semiconsciente, sentir que a morte é contagiosa e ameaçadora; afastam-se involuntariamente dos moribundos”, afirmou. “Mas, para os íntimos que se vão, um gesto de afeição é talvez a maior ajuda, ao lado do alívio da dor física, que os que ficam podem proporcionar.”
O temor do “contágio” pela morte explica a solidão e a frieza das unidades de terapia intensiva, onde, muitas vezes, os doentes terminais morrem sem a possibilidade de dizer uma última palavra aos que amam e sem ninguém que lhe ofereça conforto espiritual. Claro que morrer assim dá muito medo. Estabelece-se aí um círculo vicioso: temos pânico da morte porque ela nos parece horrível e a tornamos muito mais horrível do que poderia ser porque nos afastamos dela – e de quem morre. O escritor budista Sogyal Rinpoche, autor de O Livro Tibetano do Viver e do Morrer, espantou-se quando visitou o Ocidente pela primeira vez, na década de 1970, e constatou a insensibilidade do atendimento aos doentes terminais. “O que me perturbou profundamente, e ainda continua a perturbar, é a quase inexistência de auxílio espiritual que há na cultura moderna para aqueles que vão morrer”, escreveu ele. “Cuidado espiritual não é luxo para poucos; é direito essencial de todo ser humano.”
No início dos anos 70, iniciou-se um movimento de humanização da medicina, principalmente no campo do atendimento aos pacientes terminais, que veio a se contrapor à frieza ainda dominante dos hospitais modernos. A enfermeira britânica Cicely Saunders inovou ao propor um atendimento multiprofissional aos pacientes portadores de câncer avançado, em locais chamados hospices. Nesses abrigos, o doente conta com os cuidados médicos e com a proximidade da família. Da equipe multiprofissional fazem parte também psicólogos e sacerdotes de diferentes religiões, prontos a oferecer assistência psicológica e espiritual. O “movimento hospice” incentivou a criação das unidades de cuidados paliativos, que funcionam ligadas aos hospitais, e do homecare, o atendimento domiciliar a pacientes terminais. A idéia é simples: tão fundamental quanto ter uma boa vida é gozar de uma morte mais humana, mais envolta em serenidade e ternura.
Eis o conceito, ainda tímido no meio médico mas bastante pertinente, de ortotanásia – a morte digna, sem abreviações desnecessárias e sem sofrimentos adicionais.
No Brasil, o pioneiro na divulgação dos cuidados paliativos foi o médico Marco Tullio de Assis Figueiredo, professor da Universidade Federal de São Paulo, antiga Escola Paulista de Medicina. Além de ter criado dois cursos voltados aos estudantes da área de saúde – um sobre Tanatologia (o estudo da morte) e outro sobre Cuidados Paliativos –, Marco Tullio implantou uma Unidade de Cuidados Paliativos no Hospital São Paulo. “Os estudantes de Medicina, em geral, nada aprendem em seus cursos sobre a morte e a dimensão do processo de morrer”, diz ele, que é sócio-fundador da Associação Internacional para Hospices e Cuidados Paliativos. “Por isso, vemos médicos tentando manter a vida do paciente a qualquer preço, mesmo que isso implique em mais sofrimento para o doente.” Tal prática é conhecida como distanásia, conceito que significa o prolongamento da agonia na tentativa de adiar a morte e de conseguir uma sobrevida sem qualquer qualidade – em oposição à ortotanásia.
A equipe multiprofissional de Marco Tullio também prevê o atendimento domiciliar. “Faço o possível para que meus pacientes morram em casa, próximos dos familiares. Procuramos, assim, resgatar as noções de humanidade e dignidade na morte que a medicina contemporânea perdeu”, afirma ele. Outras unidades de cuidados paliativos estão sendo criadas em diversas regiões do Brasil, mas ainda existe resistência, mesmo entre os médicos, em falar de morte.
Num esforço para reaproximar o tema do cotidiano de crianças, adolescentes, adultos e idosos, a equipe do Laboratório de Estudos sobre a Morte, da USP, preparou uma trilogia de vídeos chamada Falando de Morte. Cada episódio é dedicado a uma fase da vida. E a morte é vista como uma das etapas da existência. O objetivo é estimular discussões sobre o assunto na escola, na família, nos hospitais. “Falar da morte é transformá-la em aliada, conselheira, em uma presença natural”, afirma Ingrid Esslinger, integrante da equipe. “Lidar com ela de modo saudável significa ter mais realizações, finalizar mais tarefas e pedir mais perdões ao longo da vida. Só assim se vive de modo mais pleno e se pode morrer mais serenamente, rompendo com o hábito de deixar certas decisões para amanhã, depois de amanhã e assim por diante.”
Na filosofia oriental, existem práticas específicas de preparação para a morte. A principal delas é a meditação, que tem o objetivo de domar a mente, a ansiedade e as emoções negativas sempre – mas especialmente no momento em que a pessoa se aproxima da morte. A maior tranqüilidade dos orientais em relação à finitude se expressa também no maior respeito em relação aos velhos. As pessoas que se encaminham para o final da vida são respeitadas, incensadas. E, não raro, têm suas existências festejadas. Não são tornadas invisíveis e indesejáveis, como ocorre com freqüência no mundo ocidental.
Uma das imagens utilizadas na meditação para caracterizar os instantes finais da existência é a de uma bela atriz sentada em frente ao espelho. O último espetáculo está prestes a começar. Ela retoca a maquiagem e repassa a sua fala antes de pisar no palco pela última vez. Está preparada para a apresentação derradeira. Esse é o objetivo da meditação: adquirir a capacidade de manter a mente tranqüila e o espírito sereno no momento da morte, independente de quando e de como ela aconteça.
Reconcilie-se com a morte. Não por morbidez, não para se esquecer de viver, não porque seja bom deixar de existir. Mas simplesmente porque ela vai acontecer e não somente com você – mas com todos os que andaram, andam ou venham a andar sobre a Terra. A você e a mim, portanto, resta apenas aprender a conviver com ela. Encará-la de frente, compreendê-la, admiti-la. Em vez de escamoteá-la, negá-la, escondê-la. E, quem sabe, assim, sofrer menos com a visita que ela nos fará um dia e com os eventuais sinais da sua presença que ela já tenha plantado ao nosso redor. Desejo uma excelente vida para você, leitor. E uma boa morte.

Para saber mais

NA LIVRARIA
A Arte de Morrer, Marie de Hennezel e Jean-Yves Leloup. Editora Vozes, Petrópolis, 1999
A Solidão dos Moribundos, Nobert Elias. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2001
Da Morte, Roosevelt Cassorla (org.). Papirus Editora, Campinas, 2001
Distanásia – Até Quando Prolongar a Vida?, Leo Pessini. Edições Loyola/Editora do Centro Universitário São Camilo, São Paulo, 2001
Memento Mori, Muriel Spark. Companhia das Letras, São Paulo, 2001
Morrer Não Se Improvisa, Bel Cesar. Editora Gaia, São Paulo, 2001
Morte e Desenvolvimento Humano, Maria Júlia Kovácz. Casa do Psicólogo, São Paulo, 1992
O Livro Tibetano do Viver e do Morrer, Sogyal Rinpoche. Editora Talento, São Paulo, 1999
Reflexões sobre a Vida e a Morte, Vera Lúcia Rezende (org.). Editora da Unicamp, Campinas, 2000

Veja o post original em Superinteressante


Por: anacelia |

Existindo inexoravelmente o sofrimento, é possível ser feliz?
O budismo parte de uma constatação difícil de assumir, a de que o sofrimento é inerente à condição humana — todos estamos fadados ao sofrimento de nascer, da doença, da velhice e da morte — para fazer a pergunta crucial: existindo inexoravelmente o sofrimento, é possível ser feliz? Se é, como fazer para obter essa felicidade?
Para o budismo, todo sofrimento é gerado por uma concepção errônea da realidade. Acreditamos que as coisas duram, e que têm existência sólida; negando a impermanência e a transitoriedade da vida, apegamo-nos às pessoas, coisas e situações de que gostamos, sentimos aversão pelo que não gostamos, e permanecemos assim, em uma condição que é definida por uma só palavra: ignorância. Na ignorância, o sofrimento é inevitável.
Mas é possível viver de outro modo. Se nos dispusermos a examinar cuidadosamente a nossa mente, buscando compreender realmente o que é a realidade, o mundo, a vida e o que somos nós mesmos, há um caminho para a felicidade — uma felicidade duradoura, profunda e que se traduz em ações compassivas.
Essa felicidade não pode se limitar a umas poucas sensações agradáveis, a alguns prazeres que logo terminam, nem a emoções ou estados de ânimo passageiros. A felicidade é uma profunda sensação de florescer que surge em uma mente excepcionalmente sadia, como diz Matthieu Ricard em seu livro Felicidade, que em breve será publicado no Brasil. Como vimos, ela deve ser também uma maneira de compreender realmente o mundo, a nossa mente, e nós mesmos, obtendo uma visão, por assim dizer, “real” de tudo. E se às vezes pode ser difícil mudar o mundo exterior, sempre é possível mudar a maneira como o vemos. Conta uma história budista que um homem desejava caminhar confortavelmente pelo mundo afora, mas as trilhas e estradas eram sempre muito acidentadas… o que fazer: andar descalço e tentar revestir todos os caminhos de relva, ou vestir uma sandália?
Se não é possível alterar toda a condição da existência humana, para todos, neste momento, então vamos transformar a nossa mente.
A felicidade verdadeira não é algo que vem do céu (e depois se vai…), mas um estado mental que conquistamos, como uma habilidade adquirida. É profunda, duradoura, pois apóia-se na percepção correta do que é o mundo, do que é a natureza e a condição humana. Essa felicidade tem como fundamento a paz e a liberdade interior, exercitada e obtida através do auto-conhecimento e da contínua prática da compaixão.
Se o sofrimento é uma realidade, a visão correta do mundo nos afirma que tudo é um sonho. Tudo é impermanente. Amanhã, as árvores, as pessoas, as coisas, tudo já não será igual. Civilizações indestrutíveis já viraram cinzas; pessoas poderosíssimas também. As nossas casas, prédios, monumentos, estradas, automóveis, todas as nossas coisas, no tempo devido terão virado pó, ou outra coisa. Até as montanhas, o relevo, a água, o próprio planeta — todos terão o destino de transformarem-se em outra coisa. Essa transformação em si, se estivermos apegados à realidade como sólida e imutável, já é fonte de sofrimento. Mas se encararmos de frente a impermanência, se buscarmos olhar o mundo por dentro dela, veremos que ao aceitá-la, em vez de perdermos o mundo, em vez de mergulharmos definitivamente na angústia inútil de tentar preservar o que está destinado a mudar, descobriremos que é possível ajudar os outros, viver o momento de maneira plena, buscando gerar atos que por sua vez gerem melhores condições para a vida dos outros e de nós mesmos. Só ao aceitar integralmente a impermanência sentiremos o verdadeiro gosto do momento presente ou, se quisermos chamar assim, da eternidade.
Há uma ética para que esses atos produzam realmente a felicidade. Tudo o que geramos, volta-se para nós — não de um modo linear ou banal, mas com toda a certeza colhemos o que plantamos. Portanto, se a vida humana é preciosa, e ela termina, para sermos realmente felizes há que descobrir um modo de viver que traga também aos outros a felicidade, que cuide do que é possível a cada um cuidar. Essa mente que busca trazer ao outro o melhor que pudermos, gerando compaixão pela dor do outro e desejando que ele obtenha a felicidade, é chamada de bodhicitta, e é a mente que dá base ao surgimento da verdadeira liberação. É a mente que tem como fundamento a compaixão e o altruísmo.
Mas é preciso despertar. Vivemos em um círculo vicioso de sofrimento que gera sofrimento. Se ele não for rompido, pela inércia jamais chegaremos à felicidade. Se olharmos bem para a nossa mente, descobriremos que ela está repleta de emoções negativas que se auto-perpetuam pela nossa omissão em tratar delas. Desse modo é impossível ser feliz. Mas se prestarmos realmente atenção ao nosso fluxo mental, descobriremos que essa atenção já tem, ainda que não possamos fazer imediatamente mais nada, um efeito curativo sobre nós. O pensamento observado comporta-se diferentemente do pensamento não observado — por pensamento, aqui, entenda-se a própria mente, com tudo o que temos dentro dela: sentimentos, percepções, pensamentos, julgamentos. Ao observarmos tudo isso, pouco a pouco a mente se liberta dessa camada obscurecida, por assim dizer, de emoções negativas, e revela a sua verdadeira natureza, que é a própria compaixão e a sabedoria. Quando a nossa mente se torna silenciosa, quando nos desapegamos da falsa idéia de permanência, quando entramos no vazio, percebemos que ele é luminoso, repleto de sabedoria e compaixão. E temos a vida nas mãos, pronta para ser vivida, preciosa desde sempre e para sempre, uma oportunidade única.
Viver assim, desperto e livre de apegos, pronto a aceitar o que é necessário fazer para tornar a vida melhor para si e para os outros é, em si, a própria felicidade. É uma vida plena, intensa, em que as emoções não são negadas ou desaparecem, mas se transformam, ou melhor, se integram ao todo harmonioso. Viver assim é viver na criação, na poiesis, na poesia, ainda que seja na condição ou atividade mais envolvida com a vida concreta. A espiritualidade do budismo não é “new age”, não é “fashion”, não é uma prática exótica vinda do oriente. É uma espiritualidade encontrada na vida cotidiana. Aprendemos a ver todo o mundo (e também nós mesmos) como o corpo sagrado da deidade; todos os sons são o seu som, todas as formas são a sua forma, todas as cores são a sua cor. Não há um “outro” lugar, ou outro tempo, em que viremos um dia a ser felizes. A felicidade é aqui mesmo, no presente — nem no passado, nem no futuro, nem em outro lugar, nem com outras pessoas. Ela está na atitude de viver a vida com compaixão, buscando sempre trazer a felicidade para o outro, usando de todos os meios hábeis para que ele a consiga.
A meditação, ou observação atenta da própria mente, traz efeitos radicais sobre a neuro-psico-fisio-imunologia — é isto que a neurociência de hoje descobre por meio de experimentos cada vez mais reveladores. Meditar faz bem à alma e à saúde; torna-nos mais abertos para tudo o que demande a nossa atenção ou cuidado. Transforma o nosso próprio funcionamento cerebral. A realidade se transforma acompanhando a nossa transformação interior. É por isso que, às vezes, torna-se difícil compreender o que é proposto com a prática da meditação para quem não medita. Mas meditar não é só, ou fundamentalmente, sentar-se em posição de lótus para, em silêncio, observar a própria mente. Com a atitude adequada, qualquer ação diária torna-se meditação. O amor faz parte, comer e beber faz parte, trabalhar faz parte, não fazer nada e descansar faz parte… quando descobrimos as camadas mais profundas da mente, e a sabedoria e compaixão que se revelam dessa descoberta, tudo isso se torna a nossa natureza. Porque, na verdade, sempre o foi — nós é que estávamos distante dela por causa dos nossos condicionamentos sociais, conceitos, emoções negativas e hábitos atávicos, que obscurecem essa nossa verdadeira natureza.
Artigo de: Arnaldo Omair Bassoli Jr, Psicólogo e professor do curso Felicidade do Instituto Palas Athena.

Publicado originalmente no blog: opovo.com.br