Há muito tempo, no Tibete, uma mulher viu seu filho, ainda
bebê, adoecer e morrer em seus braços, sem que ela nada pudesse fazer.
Desesperada, saiu pelas ruas implorando que alguém a ajudasse a
encontrar um remédio que pudesse curar a morte do filho. Como ninguém
podia ajudá-la, a mulher procurou um mestre budista, colocou o corpo da
criança a seus pés e falou sobre a profunda tristeza que a estava
abatendo. O mestre, então, respondeu que havia, sim, uma solução para a
sua dor. Ela deveria voltar à cidade e trazer para ele uma semente de
mostarda nascida em uma casa onde nunca tivesse ocorrido uma perda. A
mulher partiu, exultante, em busca da semente. Foi de casa em casa.
Sempre ouvindo as mesmas respostas. “Muita gente já morreu nessa casa”;
“Desculpe, já houve morte em nossa família”; “Aqui nós já perdemos um
bebê também.” Depois de vencer a cidade inteira sem conseguir a semente
de mostarda pedida pelo mestre, a mulher compreendeu a lição.
Voltou a ele e disse: “O sofrimento me cegou a ponto de eu imaginar que era a única pessoa que sofria nas mãos da morte”.
A morte pode ser vista como um mistério incompreensível. Ou como um
absurdo inaceitável. A morte pode até ser tratada como um tabu, assunto
do qual a maioria das pessoas não gosta de falar. Mas, seja como for,
aceitemos isso ou não, a morte é um fato, uma realidade inexorável. E
que vem para todos nós. Por mais que queiramos nos esconder dela, deixar
de existir é uma coisa tão natural quanto existir. Na verdade, a morte
é provavelmente a única coisa certa na sua existência ou na minha – e
também na de nossos pais, nossos filhos, nossos ídolos e inimigos, de
todas as pessoas que amamos e mesmo daquelas que jamais chegaremos a
conhecer: é certo que todos nós vamos morrer um dia. Pessoas boas,
pessoas ruins, gente em Xanxerê, Santa Catarina, ou em Nagano, no Japão.
E esse dia pode acontecer amanhã ou daqui a 60 anos.
A morte faz parte da
vida.
Todos começamos a morrer exatamente no dia em que nascemos. A morte,
portanto, é um etapa da nossa existência com a qual temos que conviver.
Pode-se conviver melhor ou pior com ela. Mas não se pode evitá-la.
Pode-se aceitar a sua inevitabilidade e olhá-la de frente. Ou pode-se
negá-la, fugir dela, imaginar que não pensar na morte possa fazer com
que ela deixe de acontecer com você ou com a sua família. Mas o fato
é que todos nós estamos programados para nascer, crescer e morrer – uma
obviedade esquecida por boa parte da sociedade ocidental contemporânea,
que teima em ver a morte como um evento artificial, inesperado e
injusto. Sobretudo, costumamos vê-la como um evento exclusivo, pessoal,
que isola quem sofre uma perda, por meio da dor, do resto do mundo.
Quando, ao contrário, não há nada menos exclusivo do que morrer. Nem
nada que perpasse mais a humanidade do que o sofrimento de uma perda.
Como está expresso na fábula tibetana, a morte não é privilégio nem
desgraça particular de ninguém. Ela chega para todos, sem exceção.
Mas, afinal, se a morte é tão comum e corriqueira, por que ela nos causa tanto
medo?
“O maior desejo do homem é a imortalidade”, diz a psicóloga Ingrid
Esslinger, da Universidade de São Paulo (USP), acostumada a atender
pessoas em situação de luto. “Por isso, muitas vezes a morte
é considerada uma inimiga.” E uma adversária, que poderia ser vencida
pelos avanços científico-tecnológicos do século XX, que aumentaram
indiscutivelmente a eficiência dos diagnósticos, dos medicamentos, das
técnicas cirúrgicas etc. O sonho da permanência ganhou um reforço com as
melhorias trazidas pela medicina, com o aumento da expectativa de
vida,
com a possibilidade de haver cura para todas as doenças, mesmo o câncer
ou a Aids. Enfim, soa como um despropósito falar de morte a quem tem as
descobertas da ciência a seu favor. Afinal, se existem meios de
prolongar a
vida útil do
ser humano, de manter-se jovem, de atrasar o envelhecimento, de viver mais de 100 anos, por que pensar na finitude?
É um paradoxo: a valorização da
vida e a ilusão de eterna beleza e jovialidade trazidas pela
vida
moderna acabam gerando, por meio do apego a tudo isso, muito mais
tristeza e sofrimento pelo fim inevitável da existência do que
felicidade pelo mais de
vida que proporcionam.
O mundo ocidental transformou a morte em tabu: ela costuma ser
ocultada das crianças e banida das conversas cotidianas. Tudo aquilo que
possa lembrá-la – a enfermidade, a velhice, a decrepitude –
é escamoteado. Os doentes morrem no hospital, longe dos olhos – e, não
raro, do coração – de seus amigos e parentes. E os rituais de luto são
cada vez mais rápidos e pragmáticos. O
medo natural que todo
ser humano
sente diante da própria finitude vira pânico. E mesmo a morte natural –
não causada, por exemplo, pela tremenda violência que a cada dia assola
os cidadãos no Brasil – acaba virando sinônimo de aniquilamento
sumário, de abreviamento. O que, no mais das vezes, não corresponde à
realidade por se tratar apenas de uma
vida que chegou naturalmente ao fim, de uma existência que simplesmente expirou.
“Partimos de idéias preconcebidas sobre a morte, formadas a partir da
nossa personalidade, da educação familiar e do ambiente sociocultural e
religioso em que vivemos”, diz a psicóloga Bel Cesar, do Centro de
Dharma da Paz, em São Paulo, e autora de Morrer Não Se Improvisa. Tais
imagens são rótulos que muitas vezes não correspondem à experiência
humana e que acabam alimentando fantasias amedrontadoras. “Refletir
sobre a morte pode torná-la mais familiar e, portanto, menos
ameaçadora”, diz.
O primeiro passo para conviver melhor com a idéia da morte é esquecer
aquela imagem medieval, um tanto tétrica, de um esqueleto coberto com
uma capa preta carregando uma foice afiada na mão. Talvez uma imagem
melhor para a morte seja imaginá-la como o fim de uma festa muito
bacana: você já sabia que ela acabaria, que ela teria que acabar, em
algum momento. E, pensando bem, talvez não seja de todo mal que a festa
termine. Você agüentaria dançar na pista para sempre? Por melhor que
seja a música, tem uma hora que seu corpo e sua mente pedem descanso. E
aí, talvez, seja o momento mesmo de sair da pista, serenamente, sem
traumas, e dar lugar a quem está chegando à festa cheio de gás.
Bel propõe um exercício de meditação, inspirado nas práticas
budistas: repita a palavra “morte”, de olhos fechados, inúmeras vezes.
“Surgirão pensamentos, imagens e sentimentos muitas vezes antagônicos.
Mas, se você continuar essa experiência de mergulhar até onde a palavra
‘morte’ o levar, verá que algo dentro de você mudará positivamente”, diz
ela.
O
medo
da morte é um sentimento inerente ao processo de desenvolvimento
humano. Aparece na infância, a partir das primeiras experiências de
perda. E tem várias facetas: trata-se de um
medo do desconhecido, somado ao
medo da própria extinção, da ruptura da teia afetiva, da solidão e do sofrimento. “O
medo
da morte é fundador da cultura”, diz a socioantropóloga Luce Des
Aulniers, responsável pela disciplina de Estudos Sobre a Morte, da
Universidade de Quebec, em Montreal, Canadá. “Esse
medo
funciona como pivô e como motor de todas as civilizações. A partir do
desejo de perenidade, se desenvolvem as instituições, as crenças, as
ciências, as artes, as técnicas e mesmo as organizações políticas e
econômicas.”
Esse é o lado, digamos, vital da morte. “O
medo
da morte nos força a viver – a nos relacionarmos, a procriarmos, a
criarmos, a construirmos coisas que nos transcendam”, diz Luce. Na
ilusão da imortalidade, o
ser humano
acredita que suas obras sejam permanentes e garantam que ele não seja
esquecido. Cada um adapta, à sua própria maneira, a máxima “plantar uma
árvore, escrever um livro e fazer um filho”. Isso ocorre porque, para o
nosso inconsciente, a morte nunca é possível nem admissível quando se
trata de nós mesmos. “A idéia da não-existência provoca tal desconforto
que a mente humana acaba criando alguns mecanismos de defesa para fugir
dessa realidade”, diz o psiquiatra e psicanalista Roosevelt Smeke
Cassorla, da Sociedade Brasileira de Psicanálise, em São Paulo. A
negação e a repressão da idéia de morte são exemplos desses artifícios.
Nada disso é novidade. Desde os tempos mais remotos, os homens já enxergavam a morte como elemento antagônico à
vida
– e não como parte integrante e inseparável dela. Talvez fosse mais
fácil aceitá-la como fato natural quando ela acontecia aos borbotões,
quando a expectativa de
vida
das pessoas era de 35 anos. Mas o estranhamento e o terror sempre
existiram. As pinturas encontradas nas paredes de cavernas como Lascaux e
Chauvert, na França, revelam o incômodo que a morte provocava no homem
de 30 000 anos atrás. Os episódios alegres, como as caçadas, eram
retratados em cores vivas, usando óxido de ferro (alaranjado) ou
calcário amarelo. As imagens fúnebres, por sua vez, eram pintadas com
cores escuras, com carvão.
O antagonismo se mantém dentro de cada um de nós, no jogo constante
entre Eros, o deus grego do amor, e Tanatos, o deus da morte, para usar
uma imagem cunhada por Sigmund Freud, fundador da psicanálise. As forças
da
vida,
representadas por Eros, estimulariam o crescimento, a integração, a
autoproteção e a sobrevivência. As forças da morte, representadas por
Tanatos, alimentariam os instintos destrutivos e as atitudes de
auto-sabotagem, por exemplo. Da conciliação dessas forças
contraditórias, surgiria o equilíbrio e o vigor emocional necessários
para viver.
No entanto, o
medo
de morrer pode gerar um apego desmedido a elementos cotidianos e um
conseqüente desespero diante da possibilidade de vir a “perder tudo” com
a morte – a companhia dos amigos, o carro novo, os imóveis, o status
social, os projetos não realizados. No budismo, assim como na tradição
cristã, o desapego é condição essencial para uma “boa morte”.
“Normalmente assumimos que precisamos dominar alguma coisa para que ela
nos traga felicidade. E nos perguntamos: como é possível saborear alguma
coisa se não podemos possuí-la?”, escreve Sogyal Rinpoche, em seu O
Livro Tibetano do Viver e do Morrer. “Mas, na morte, não podemos levar
nada conosco.” Nem bens, nem diplomas, nem o sucesso. Eis aqui outro
paradoxo: para viver bem, sem o terror e o tormento da idéia do fim,
é preciso cultivar um certo desapego em relação à
vida.
Em outras palavras: para experimentar a “boa morte” e morrer
serenamente – em oposição a viver atarantado pela iminência da
“cadavérica” e assim morrer sofrendo – é preciso absorver a idéia de
que, como quase tudo neste mundo, também nós somos impermanentes.
A
vida
é como um contrato que estabelece a própria vigência em uma das
cláusulas. Ou seja, basta estar vivo para estar sujeito às leis da
existência, que determinam o seu próprio término. Lutar contra esse fato
inelutável é garantia de dor. Ao contrário, aceitar a transitoriedade
da condição humana – que se aplica a você, a mim e a mais seis bilhões
de indivíduos – ajuda a aliviar o sofrimento que a idéia da morte
costuma trazer. Você não pode mudar o fato de que vai acabar um dia. Mas
você pode mudar o modo como se relaciona com esse fato. Em certas
ordens religiosas católicas, os monges, ao se encontrarem nos corredores
do mosteiro, costumam dizer uns aos outros: “Memento mori”, uma
expressão latina que significa “lembre-se de que vai morrer”. A saudação
– que é o contraponto de “Carpe diem” (“aproveite o dia”) – funciona
como um exercício espiritual de aceitação gradual e diária da morte,
vendo-a como uma conseqüência da própria
vida e também de preparação para o momento em que ela acontecer.
O contrário disso é o culto ao ego, ao “pequeno eu” que há dentro de
cada um de nós, manifestado na não-aceitação do curso natural dos
acontecimentos, quando ele não ocorre como gostaríamos. E que está
presente no indivíduo que tenta se colocar sempre acima do todo a que
pertence. Ao não conseguir fazê-lo, esse “eu” sofre exagerada e
desnecessariamente para aceitar a parte que lhe cabe. Na
vida,
quanto mais você está centrado em si mesmo, sem compartilhar suas
alegrias e suas frustrações com os outros, mais você sofre com a
ausência de solidariedade, com o isolamento que impõe a si mesmo, com a
falsa idéia de que está desamparado. Na morte, acontece a mesma coisa.
Quanto menos você compartilha a sua dor – e o sofrimento é um dos elos
fundamentais da humanidade –, mais insuportável ela se torna.
As perdas que você acumula ao longo da
vida podem tanto potencializar o seu
medo
da morte quanto ensiná-lo a conviver melhor com a finitude. “Vivemos
pequenas perdas todos os dias. Uma separação, uma demissão, a morte de
um amigo, a notícia de uma doença incurável”, diz a psicóloga Maria
Helena Bromberg, coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções
sobre Luto (Lelu), da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São
Paulo. “Essas experiências cotidianas de morte nos ajudam a entender que
nada dura para sempre. Inclusive nós, em nossa natureza mortal.”
Uma história antiga ajuda a entender melhor esse processo de pequenas
aprendizagens – e como muitos de nós o ignoram. Um dia, há muito tempo,
um homem resolveu fazer um trato com a Morte. Prometeu a ela que não
ofereceria resistência quando sua hora chegasse. Mas pediu, em troca,
que fosse avisado com antecedência porque queria ter tempo suficiente
para terminar todas as suas tarefas. O acordo foi feito. Tempos depois,
houve um acidente grave na cidade e muitos amigos do homem morreram.
Anos mais tarde, um vizinho próximo faleceu. Em seguida, foi a vez de um
tio. Até que o homem ficou doente e, em alguns meses, encontrou-se com a
Morte. Ela tinha vindo buscá-lo. Revoltado, reclamou: “Eu pedi que você
me avisasse quando viria e não recebi um sinal!” Ao que a Morte
respondeu: “A morte dos seus amigos, do seu vizinho, do seu tio não
bastaram?”
Para quem busca na filosofia maneiras de lidar melhor com a morte, as
reflexões finais do filósofo grego Sócrates – condenado a tomar cicuta,
um veneno letal –, realizadas no século V a.C., representam um
excelente exercício de aceitação. “Porque morrer é uma ou outra destas
duas coisas. Ou o morto não tem absolutamente nenhuma existência,
nenhuma consciência do que quer que seja. Ou, como se diz, a morte
é precisamente uma mudança de existência e, para a alma, uma migração
deste lugar para outro”, afirmou Sócrates. Em outras palavras: para quem
não acredita na continuação da
vida,
a morte é o nada, é a ausência completa de angústias e desesperos, é o
fim das aflições. E para quem acredita na continuação da
vida, a morte é a passagem desta existência para outra melhor. De qualquer modo, a dor estaria na
vida e não na morte.
Quando chegou o momento de beber o veneno, Sócrates disse a seus
discípulos, numa última lição: “Mas já é hora de irmos: eu para a morte e
vocês para viverem. Mas quem vai para melhor sorte é segredo, exceto
para Deus.”
A morte é um assunto tão complexo que sequer há uma concordância
entre os cientistas quanto sua definição. No campo filosófico, essa
discussão fica ainda mais sinuosa. “Apesar de considerarmos a morte como
um evento biologicamente irreversível, ela não pode ser determinada
exclusivamente pelo critério biológico, pois envolve também questões
ontológicas e filosóficas”, afirma o patologista forense Marcos de
Almeida, professor de Medicina Legal e Bioética da Universidade Federal
de São Paulo. Alma e consciência são sinônimos? Existe uma alma imortal?
Se sim, para onde ela vai quando morremos? Sem respostas definitivas da
ciência, o homem busca, nas crenças religiosas, explicações para o
fenômeno da morte. Para uns, trata-se de uma passagem, uma transição
desta
vida para outra, mais plena e mais feliz. Para outros, é o momento máximo de iluminação, uma forma de libertação do sofrimento.
Há ainda aqueles para quem morrer é simplesmente deixar de existir –
como se fôssemos uma lâmpada que se apaga, sem qualquer possibilidade de
transcendência.
“Pesquisas demonstram que pessoas com forte grau de envolvimento religioso, independente da crença, geralmente têm menos
medo
da morte”, afirma a psicóloga Maria Júlia Kovácz, coordenadora do
Laboratório de Estudos sobre a Morte (LEM) da USP e autora de Morte e
Desenvolvimento Humano. “A fé ajuda a superar a ansiedade em relação à
idéia de finitude”, diz ela. Para o psicanalista Roosevelt Cassorla, “na
religião o indivíduo convive melhor com a finitude porque lá encontra
certezas sobre por que vive, por que morre e o que acontece após a
morte.”
Se há uma outra
vida
que se segue à morte, existiria então uma continuidade da mente ou do
espírito. “Viver em função dessa continuidade nos torna mais
responsáveis pelas conseqüências dos nossos atos”, diz a psicóloga Bel
Cesar. “O fruto apodrece, cai no chão, mas deixa a semente que dará
vida
a outro fruto. Assim também conosco.” A visão espiritual da morte
implica desapego. Afinal, é também por meio da aceitação da
impermanência humana que a religião ajuda a suavizar o sofrimento
causado pela finitude. Por outro lado, a idéia de transcendência, do
indivíduo que vence a morte, paradoxalmente embute uma aspiração à
perenidade, ao não admitir que o sujeito chegue a um fim e ao propor que
ele perdure em algum outro lugar, existindo de alguma outra maneira.
Em oposição à visão espiritualista da morte, há a tradição
materialista ocidental, que surgiu na Antigüidade e depois foi retomada
pelos filósofos do Iluminismo, a partir do século XVIII, para a qual a
morte é o fim total e absoluto. Nada mais do que a interrupção de um
processo neurofisiológico, de um mero evento biológico. Essa concepção,
mais tarde lapidada pelos existencialistas, como o francês Jean-Paul
Sartre, funda muito da nossa visão de que morrer é um fracasso, um
escândalo, uma idéia inconcebível com a qual é impossível lidar e inútil
tentar conviver. “Morrer é um absurdo”, escreveu o filósofo
existencialista Arthur Schopenhauer (1788-1860). A morte não cabe na
idéia cartesiana de
vida
– para a qual tudo poderia ser medido, compreendido, planejado. A
finitude quebra a ilusão iluminista e antropocêntrica de que o homem
poderia controlar tudo por meio da sua razão. A possibilidade de não
estar mais aqui amanhã não cabe nesse jeito de entender o mundo.
O Ocidente, em seu esforço por não admitir a morte, está há pelo menos 30 anos obcecado pela idéia do jovem como metáfora de
vida
saudável. O envelhecimento, que também pode ser saudável, é visto
sempre como decrepitude – e a morte é vista sempre como a epítome disso.
“Há uma negação muito clara da finitude. Sobretudo porque os valores da
sociedade de massa e de consumo são antagônicos à idéia de morte: o
fetichismo da juventude eterna, os ideais de progresso, a acumulação de
bens, a busca da imortalidade”, diz Olgária Feres Matos, professora do
Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. A sociedade
ocidental vive um presente perpétuo, imediato. “Não há nem a visão de um
futuro nem a evocação de um passado. Por isso, a morte não é admitida
como uma experiência humana aceitável”, afirma Olgária. O resultado
é uma sociedade atormentada, que busca inutilmente a serenidade e a
felicidade não no autoconhecimento, mas em fugas da realidade
indiscutível de que um dia iremos deixar de existir.
“Atualmente se vive muito mal. As pessoas, hipnotizadas por falsas necessidades, não têm uma
vida
emocional rica. E morre-se de modo ainda pior”, diz o psicanalista
Roosevelt Cassorla. Muitas vezes, morre-se sozinho, na assepsia gelada
dos hospitais, experimentando um dos medos mais primitivos do
ser humano:
a solidão. Até o luto é suprimido – uma exigência implícita para que a
dor seja contida, pois os sinais de morte não podem transparecer aos que
ficaram.
“Gastamos nossos dias tentando aproveitar a
vida
e chegamos ao momento da morte totalmente despreparados”, afirma o
filósofo Basílio Pawlowicz, da Associação Palas Athena, um centro de
estudos especializado em temas ligados à espiritualidade, em São Paulo.
“Se você não disse o que queria dizer, não amou o quanto poderia amar,
não tentou aquilo que desejava tentar, logicamente morrerá angustiado,
com a sensação de que a
vida se foi e tudo ficou pela metade.”
Mesmo no mundo ocidental, no entanto, sobrevivem tradições que, ao festejar a morte, celebram a
vida.
O “Dia dos Mortos”, no México, é um exemplo disso. “Ainda existem
aldeias que desenterram os mortos nesse dia. Trata-se de um costume
indígena milenar. As refeições são feitas no cemitério e as crianças
ganham doces e bombons em forma de caveiras”, diz o historiador Leandro
Karnal, professor de História da América na Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp). “No interior do país, sobrevive a prática de
conversar com os mortos para colocá-los a par do que aconteceu durante o
ano.” As famílias preparam altares para seus falecidos e neles colocam
os objetos de predileção do parente morto: livros, cigarros, comidas,
fotografias.
A atitude de festejar a morte também está presente na cultura
japonesa. “Povoado do Moinho”, o último episódio do filme Sonhos (1992),
do diretor japonês Akira Kurosawa, exibe o confronto entre a antiga
concepção de morte, expressa nos ritos funerários do vilarejo, e a nova,
ocidentalizada, representada por um forasteiro que assiste à cerimônia.
O cortejo segue, alegre, pelas ruas do povoado. Crianças, jovens e
adultos cantam e dançam durante todo o trajeto do enterro. Eles celebram
a morte de uma das mulheres mais velhas da aldeia. O clima de festa
surpreende o forasteiro, acostumado – como nós – à atmosfera sombria de
boa parte da liturgia funerária ocidental. Um velhinho centenário,
então, explica ao rapaz que é uma honra encontrar a morte depois de uma
existência tão plena como a daquela mulher. Por isso, tal fato merece
comemoração. A história mostra como o fato de morrer pode ser encarado
com serenidade e satisfação, como uma homenagem à própria
vida que terminou ali.
A morte já foi vista de modo mais familiar pelo Ocidente. E não faz
tanto tempo assim. Até meados do século passado, era costume morrer em
casa, cercado por parentes. “A família reunia-se em volta do leito para
ouvir a última palavra daquele que estava morrendo”, afirma o
historiador Eduardo Basto de Albuquerque, da Universidade Estadual
Paulista, em Rio Claro. “Era um momento de despedida.” Não se ocultava
das crianças a morte como se faz atualmente. O velório também era, na
maioria das vezes, realizado em casa – tradição que ainda sobrevive em
algumas cidades do interior do Brasil. “Existiam comidas típicas para a
ocasião. Os parentes preparavam alguns pratos para receber os conhecidos
que participavam do enterro. Havia, inclusive, cânticos e orações
especiais para o momento”, diz Eduardo.
Com a morte tendo sido transferida para a impessoalidade dos
hospitais, perdemos a noção da importância dos rituais funerários, que
conferem um sentido ao sofrimento e à morte. A expulsão da morte da
nossa intimidade, privando aquele que está prestes a morrer da nossa
ternura e da nossa solidariedade nos momentos finais, é uma metáfora da
negação da finitude que operamos em nossas próprias vidas. “Os rituais
de morte estão presentes em todas as sociedades do planeta. Servem para a
compreensão ‘social’ do fenômeno: ajudam a digerir o impacto provocado
pela perda do outro e funcionam como fator de agregação daquela
sociedade”, diz o antropólogo Guillermo Ruben, da Unicamp.
“Os rituais seculares foram esvaziados de sentimentos e significado”,
escreveu o sociólogo alemão Nobert Elias, na arguta análise da
experiência de morte nos dias de hoje, presente em A Solidão dos
Moribundos. “O crescente tabu da civilização em relação à expressão de
sentimentos espontâneos e fortes trava suas línguas e mãos. E os
viventes podem, de maneira semiconsciente, sentir que a morte
é contagiosa e ameaçadora; afastam-se involuntariamente dos moribundos”,
afirmou. “Mas, para os íntimos que se vão, um gesto de afeição é talvez
a maior ajuda, ao lado do alívio da dor física, que os que ficam podem
proporcionar.”
O temor do “contágio” pela morte explica a solidão e a frieza das
unidades de terapia intensiva, onde, muitas vezes, os doentes terminais
morrem sem a possibilidade de dizer uma última palavra aos que amam e
sem ninguém que lhe ofereça conforto espiritual. Claro que morrer assim
dá muito
medo.
Estabelece-se aí um círculo vicioso: temos pânico da morte porque ela
nos parece horrível e a tornamos muito mais horrível do que poderia ser
porque nos afastamos dela – e de quem morre. O escritor budista Sogyal
Rinpoche, autor de O Livro Tibetano do Viver e do Morrer, espantou-se
quando visitou o Ocidente pela primeira vez, na década de 1970, e
constatou a insensibilidade do atendimento aos doentes terminais. “O que
me perturbou profundamente, e ainda continua a perturbar, é a quase
inexistência de auxílio espiritual que há na cultura moderna para
aqueles que vão morrer”, escreveu ele. “Cuidado espiritual não é luxo
para poucos; é direito essencial de todo
ser humano.”
No início dos anos 70, iniciou-se um movimento de humanização da
medicina, principalmente no campo do atendimento aos pacientes
terminais, que veio a se contrapor à frieza ainda dominante dos
hospitais modernos. A enfermeira britânica Cicely Saunders inovou ao
propor um atendimento multiprofissional aos pacientes portadores de
câncer avançado, em locais chamados hospices. Nesses abrigos, o doente
conta com os cuidados médicos e com a proximidade da família. Da equipe
multiprofissional fazem parte também psicólogos e sacerdotes de
diferentes religiões, prontos a oferecer assistência psicológica e
espiritual. O “movimento hospice” incentivou a criação das unidades de
cuidados paliativos, que funcionam ligadas aos hospitais, e do homecare,
o atendimento domiciliar a pacientes terminais. A idéia é simples: tão
fundamental quanto ter uma boa
vida é gozar de uma morte mais humana, mais envolta em serenidade e ternura.
Eis o conceito, ainda tímido no meio médico mas bastante pertinente,
de ortotanásia – a morte digna, sem abreviações desnecessárias e sem
sofrimentos adicionais.
No Brasil, o pioneiro na divulgação dos cuidados paliativos foi o
médico Marco Tullio de Assis Figueiredo, professor da Universidade
Federal de São Paulo, antiga Escola Paulista de Medicina. Além de ter
criado dois cursos voltados aos estudantes da área de saúde – um sobre
Tanatologia (o estudo da morte) e outro sobre Cuidados Paliativos –,
Marco Tullio implantou uma Unidade de Cuidados Paliativos no Hospital
São Paulo. “Os estudantes de Medicina, em geral, nada aprendem em seus
cursos sobre a morte e a dimensão do processo de morrer”, diz ele, que
é sócio-fundador da Associação Internacional para Hospices e Cuidados
Paliativos. “Por isso, vemos médicos tentando manter a
vida
do paciente a qualquer preço, mesmo que isso implique em mais
sofrimento para o doente.” Tal prática é conhecida como distanásia,
conceito que significa o prolongamento da agonia na tentativa de adiar a
morte e de conseguir uma sobrevida sem qualquer qualidade – em oposição
à ortotanásia.
A equipe multiprofissional de Marco Tullio também prevê o atendimento
domiciliar. “Faço o possível para que meus pacientes morram em casa,
próximos dos familiares. Procuramos, assim, resgatar as noções de
humanidade e dignidade na morte que a medicina contemporânea perdeu”,
afirma ele. Outras unidades de cuidados paliativos estão sendo criadas
em diversas regiões do Brasil, mas ainda existe resistência, mesmo entre
os médicos, em falar de morte.
Num esforço para reaproximar o tema do cotidiano de crianças,
adolescentes, adultos e idosos, a equipe do Laboratório de Estudos sobre
a Morte, da USP, preparou uma trilogia de vídeos chamada Falando de
Morte. Cada episódio é dedicado a uma fase da
vida.
E a morte é vista como uma das etapas da existência. O objetivo
é estimular discussões sobre o assunto na escola, na família, nos
hospitais. “Falar da morte é transformá-la em aliada, conselheira, em
uma presença natural”, afirma Ingrid Esslinger, integrante da equipe.
“Lidar com ela de modo saudável significa ter mais realizações,
finalizar mais tarefas e pedir mais perdões ao longo da
vida.
Só assim se vive de modo mais pleno e se pode morrer mais serenamente,
rompendo com o hábito de deixar certas decisões para amanhã, depois de
amanhã e assim por diante.”
Na filosofia oriental, existem práticas específicas de preparação
para a morte. A principal delas é a meditação, que tem o objetivo de
domar a mente, a ansiedade e as emoções negativas sempre – mas
especialmente no momento em que a pessoa se aproxima da morte. A maior
tranqüilidade dos orientais em relação à finitude se expressa também no
maior respeito em relação aos velhos. As pessoas que se encaminham para o
final da
vida
são respeitadas, incensadas. E, não raro, têm suas existências
festejadas. Não são tornadas invisíveis e indesejáveis, como ocorre com
freqüência no mundo ocidental.
Uma das imagens utilizadas na meditação para caracterizar os
instantes finais da existência é a de uma bela atriz sentada em frente
ao espelho. O último espetáculo está prestes a começar. Ela retoca a
maquiagem e repassa a sua fala antes de pisar no palco pela última vez.
Está preparada para a apresentação derradeira. Esse é o objetivo da
meditação: adquirir a capacidade de manter a mente tranqüila e o
espírito sereno no momento da morte, independente de quando e de como
ela aconteça.
Reconcilie-se com a morte. Não por morbidez, não para se esquecer de
viver, não porque seja bom deixar de existir. Mas simplesmente porque
ela vai acontecer e não somente com você – mas com todos os que andaram,
andam ou venham a andar sobre a Terra. A você e a mim, portanto, resta
apenas aprender a conviver com ela. Encará-la de frente, compreendê-la,
admiti-la. Em vez de escamoteá-la, negá-la, escondê-la. E, quem sabe,
assim, sofrer menos com a visita que ela nos fará um dia e com os
eventuais sinais da sua presença que ela já tenha plantado ao nosso
redor. Desejo uma excelente
vida para você, leitor. E uma boa morte.
Para saber mais
NA LIVRARIA
A Arte de Morrer, Marie de Hennezel e Jean-Yves Leloup. Editora Vozes, Petrópolis, 1999
A Solidão dos Moribundos, Nobert Elias. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2001
Da Morte, Roosevelt Cassorla (org.). Papirus Editora, Campinas, 2001
Distanásia – Até Quando Prolongar a
Vida?, Leo Pessini. Edições Loyola/Editora do Centro Universitário São Camilo, São Paulo, 2001
Memento Mori, Muriel Spark. Companhia das Letras, São Paulo, 2001
Morrer Não Se Improvisa, Bel Cesar. Editora Gaia, São Paulo, 2001
Morte e Desenvolvimento Humano, Maria Júlia Kovácz. Casa do Psicólogo, São Paulo, 1992
O Livro Tibetano do Viver e do Morrer, Sogyal Rinpoche. Editora Talento, São Paulo, 1999
Reflexões sobre a
Vida e a Morte, Vera Lúcia Rezende (org.). Editora da Unicamp, Campinas, 2000
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